Há de se temer o fantasma do Ataliba
A burguesia tem seus encantos, alimenta sonhos de poder, de riqueza, de luxo, logo não é fácil convencer a maioria da graça da virtude, do humanismo da existência modesta, seja em nível médio, seja como pobre mesmo. O sonho burguês, portanto atiça a fantasia de gregos e troianos, pois mais forte que as pregações, as louvações aos humildes, é o fascínio por ter terras, mansões, coberturas, carros novos, dinheiro e liberdade para comprar, guardar ou viajar.
Essa sedução do ter, distante e sempre sonhada, não podia ser desfeita na experiência socialista do Leste Europeu, que em quatro décadas só conseguiu garantia de emprego, saúde, educação, moradia, lazer, alimentação, reduzindo os índices de pobreza, doença, criminalidade, marginalização. Tais conquistas, na prática, não ajudaram a matar a fascinação burguesa da casa rica, da mesa farta, do amplo direito de propriedade, do comércio intenso, donde a reviravolta naqueles países, onde sempre foi forte a concentração da riqueza, a tradição de ser rico, sem refletir sobre os efeitos da acumulação, que impede os sonhos da maioria. Pior ainda: os regimes do Leste, queimando etapas, restringiram a liberdade imprensa, as ações da oposição, esquecendo que aí se tem uma válvula de escape, uma forma de aliviar as tensões, as insatisfações.
Além disso, a rigor, os povos do Leste Europeu entraram na aventura socialista por obra do nazismo, cujo crescimento assistiram passivamente, pois andavam atemorizados com o Manifesto Comunista do judeu Karl Marx e com a revolução de 1917, na Rússia, liderada por Lênin, um judeu também. Assim foram dominados, escravizados, e quando os russos vinham de volta, arrasando as forças nazistas, lógico que a minoria – a resistência – assumiu o poder que teve de ser mantido com a ajuda dos soviéticos, alvo principal dos nazifascistas, que apanharam os judeus como bodes expiatórios, ou mesmo raça que produzia subversivos.
Mas os russos, que perderam 20 milhões de patriotas na guerra, chegaram à conclusão de que devem agora cuidar dos sonhos próprios, deixando de injetar milhões de dólares em armamentos, tropas, ajuda econômica, até porque são hoje uma grande potência, podem experimentar certos encantos burgueses e não têm porque temer, com tanta bomba atômica, o surgimento de um Hitler qualquer ameaçando novamente arrasar a União Soviética.
A estratégia russa, no caso, leva jeito de carga ao mar, por excesso de peso, então se salvem sozinhos, como socialistas ou sociais democratas, pois além de conquistas espaciais, avanços na indústria bélica, comunicações, técnicas agrícolas, artes, ciência, o povo russo quer mais coisas como moradia melhor, eletrodomésticos de qualidade, supermercados abastecidos, carros, casa de campo, colônias de férias.
Tal visão pode parecer simplista, negação do internacionalismo proletário, mas afinal a União Soviética não tem, nos chamados países satélites, empresas no estilo das multinacionais, logo não há remessa de lucros, entrada de dólares, sendo o imperialismo soviético uma espécie de tigre de papel, não vale coisa nenhuma. Diante da mudança, cresce a inquietação com o ruir do sonho socialista no Leste Europeu, que deixa perplexos os crentes na marcha irreversível do socialismo. Daí a indagação: o sonho acabou? Por enquanto, sem dúvida, parece um pesadelo, com um despertar de agonia, angústia, agravados pelos foguetes, rojões que os conservadores soltam no mundo capitalista, onde os nazifascistas tentam sepultar Marx, Lênin, e desenterrar Stalin como símbolo do sistema quando na verdade foi personagem de um período conturbado da história. Mas como diria Karl Marx “tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado será profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentido mais sóbrios suas reais condições devida e sua relação com outros homens”.
Essa zorra de agora, camarada, não deve causar medo, abatimentos, pois há quase dois mil anos os cristãos pregam a solidariedade, o desapego aos bens materiais condena a riqueza desmedida, a ostentação, sem conseguir grandes avanços, vitórias concretas. Não é exagero, portanto, admitir que os socialistas do Leste Europeu, com seus sonhos, enraizados há século, não tentem de novo a saída burguesa, recuando depois ou sofrendo as consequências do processo, com a dimensão exata da realidade e da fantasia.
Tanto lá, como aqui, a liberdade não faz medo. Há que se temer, isto sim, o fantasma do Ataliba. Não se trata de General, um Hitler caboclo, mas de um censor do Estado Novo que chegou ao jornal pronto para cortar texto, mandar para o lixo. Então surgiu o editor e disse ao homem: Você está desempregado, a censura acabou. O Ataliba não sabia de nada, o regime caiu, ele não acreditou, de sorte que não perdeu a pose, a arrogância, arrumou as coisas e profetizou:
-Mas eu volto.
O Ataliba efetivamente voltou novamente censor, repressor, apoiado noutra ditadura, assim como estão tentando ressurgir os nazifascistas em várias partes do mundo. A preocupação maior, portanto, é que a liberdade não seja, mais uma vez, instrumento de conquista do poder por essa gente, nem aqui, nem no inferno, pois aí sim qualquer sonho vira um permanente pesadelo.
Nagib Jorge Neto
Obs.: texto extraído do livro de sua autoria: Que Zorra, Camarada!
Agradeço ao amigo pela publicação do texto ao qual considero muito interessante.